Encontro com a Sombra
Conceitos Junguianos
- Venha, pode entrar, venha devagar... somos parte um do outro -
O encontro com a sombra é um momento muito importante em um processo terapêutico. Mas afinal, o que é a sombra? Olharemos para esse conceito a partir do ângulo junguiano. Para falar sobre a sombra, temos que primeiro entender um pouco sobre o ego e a persona. Ao chegarmos no mundo, estamos imersos no inconsciente coletivo, somos uma espécie de somatória de potencialidades, totalmente indiferenciados desse todo que nos envolve. Para um bebê, tudo é um só.
Ao longo do crescimento, por volta dos três anos de idade, a criança começa a desenvolver seu senso de identidade, ou seja, o seu ego começa a brotar. É o momento em que a palavra “eu” começa a ser infinitamente repetida. Esse processo se inicia ali e vai se desenrolar até o final da vida. Principalmente nas primeiras etapas da vida, sendo a adolescência um momento chave para isso, um momento em que buscamos nos definir. Esse senso de identidade é muito importante para vivermos de forma plena, porém ao nos moldarmos e definirmos o que somos, em paralelo, excluímos uma série do que não somos.
Todo crescimento saudável busca uma dose de adaptação e assim em uma sociedade extremamente dual que define o que é bom e o que é mal, o que é feio e o que é bonito, é natural que queiramos nos aproximar do que é bom, belo, correto. Assim, vamos nos identificando com as qualidades ditas positivas em nossa sociedade e acreditando que somos bons e verdadeiros. Claro, ninguém quer se sentir cruel, mesquinho ou egoísta. Mas, vamos pensar, se todos se creem tão justos e corretos, onde estarão todos os defeitos humanos?
Se você pensou “no outro”, acertou. Tudo aquilo que não é bom, só conseguimos ver no outro. Apontamos o dedo para a atitude alheia, porque não somos capazes de percebê-la em nós mesmos. O ego é uma estrutura que deveria mediar todas as facetas que moram em nós, não se apegando a nenhuma delas, mas buscando nos integrar e servir ao todo, ao princípio organizador em nós. Essa não é uma tarefa fácil, é difícil para ele dar conta de toda a infinidade de sentimentos que moram em nosso interior, afinal, temos a humanidade toda dentro de nós. Então, esse complexo chamado sombra se desenvolve.

Tudo aquilo que não conseguimos ver ou lidar, aquilo que é difícil para nós, vai ficando no escuro. Podemos imaginar nossa psique como um quarto e nesse quarto a luz do sol não chega em alguns pontos. E tem aquele cantinho que já não conseguimos enxergar nada e está tudo meio bagunçado, meio misturado, então tudo que tem a ver com aquela bagunça ou que não estamos afim de lidar, jogamos ali. E ali, vamos acumulando uma série de qualidades humanas, positivas ou negativas. O problema é que se formos acumulando, acumulando e nunca pararmos para dar uma olhada, a sombra irá crescer e se tornar cada vez um pouco mais autônoma, um outro que mora em nós.
Esse mecanismo ocorre tanto em âmbito individual, quanto coletivo. O inferno são os outros. A história da humanidade é repleta de episódios em que determinado povo era o grande culpado pelo mal. E quando não olhamos para a sombra, isso se repete no macro e no microcosmos. A nível individual, passamos a ter atitudes ou pensamentos cada vez mais obsessivos que já não conseguimos controlar, pois a sombra está cada vez mais forte. Isso faz com que vivamos pela metade, culpabilizando todos, menos a nós mesmos. Olhar para a sombra tem a ver com se aceitar, tem a ver com se tornar responsável pelas suas próprias realizações e atitudes, pois o mal mora em todos nós.
Entendendo essa primeira ideia é importante atentarmos a dois fatores. O primeiro é percebermos que este é um mecanismo psíquico humano. Faz parte do nosso crescimento, deixar partes nossas na sombra, pois seria demasiado complexo para o ego dar conta de tudo. Não precisamos nos sentir mal quando percebemos que temos sombra, que não somos tão justos assim. Todas as pessoas possuem sombras. Todos nós. Faz parte de ser humano e tudo que você considerar negativo faz parte de todo ser humano também. Então, esse é o primeiro passo importante para começar a olhar para ela.
Quanto mais lidamos com nossa sombra, aceitamos nossos defeitos, nossos erros em vez de empurrá-los para debaixo do tapete, mais ela vai sendo integrada ao nosso self e mais completos nos tornamos. Pois ela tem suas qualidades também e é aí que fica muito interessante o processo de autoconhecimento. Na nossa sombra mora também potenciais, talentos, desejos nossos que também tiveram que ser deixados de lado ao longo da nossa jornada. Permitir-se olhar para a sombra é permitir se ver novamente, de redescobrir. Lembrar que ela é também amiga, ela é protetora, ela é também um mecanismo de defesa do qual precisamos nos aproximar e não afastar.
No entanto, esse processo de aproximar-se da sombra precisa ser feito de maneira cuidadosa. Vamos voltar à metáfora do quarto, aquele cantinho escuro que já nem lembramos o que tem, pode ter objetos cortantes, mofo, ratos, sujeira… Dá trabalho reorganizar, não é? Precisa de um pouco de luz, luvas, algum produto de limpeza... Se a gente só chegar lá e começar a revirar, pode subir muito pó e não vai dar para entender o que tem alii, afinal está escuro e tudo pode parecer muito diferente do que realmente é. Lembre que a sombra que se projeta costuma distorcer nossa percepção. Então, é preciso ir com cuidado para mexer nesses núcleos que ficaram adormecidos, indiferenciados.
Em primeiro lugar, é preciso um pouco de luz. Ir olhando uma coisa de cada vez, dando-se tempo, pois cada coisa que estiver ali vai mexer com nosso ego, com nossa estrutura. A gente não larga conteúdos naquele cantinho sem motivo, mas porque algo nos levou a isso. Então, temos que estar prontos para reviver sentimentos, reviver histórias. É difícil mexer em qualquer coisa que ficou parada por muito tempo, pode trazer dor, desconforto, porém, precisamos confiar que somos capazes de olhar para tudo aquilo de outro ângulo agora. Por isso, usa-se o termo trazer à luz da consciência, ou seja, conscientizar-se do que mora ali. De que sentimentos você possui e finge que não, as vontades, talentos, e etc.
A meta é o equilíbrio, pela teoria junguiana, o caminho do meio, segundo o Tao. Isso quer dizer que nós precisamos também dessas partes “feias”, que precisamos desse outro lado da moeda e apenas conhecendo ambos os lados chegaremos à luz. Uma frase célebre de Jung nos diz “Você não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas sim ao tornar a escuridão consciente.” Para vivenciar um caminho terapêutico ou de autoconhecimento é imprescindível passar por essa etapa. Sim, requer coragem para se descobrir, mas o importante é lembrar que isso não precisa ser feito sozinho, há muitas pessoas buscando esse caminho também para te apoiarem.
Por fim, o segundo ponto que acho importante mencionar, de forma breve, (podemos aprofundar em outro texto) é relacionado ao motivo desse dedo apontado para o outro. Qual o motivo de vermos nos outros essas qualidades que não conseguimos ver em nós. Isto está ligado ao mecanismo de projeção. Nossos conteúdos internos que estão no escuro, que não conseguimos ver, nós projetamos lá fora. Ou seja, nós vemos no mundo aquilo que mora em nós. Se reconhecemos amorosidade em um amigo, é porque essa amorosidade também mora em nós. Se achamos todos à nossa volta egoístas, o egoísmo está no mundo interior. É um mecanismo psíquico básico, é fundamental para nosso autoconhecimento. As imagens lá de fora são reflexos da imagem aqui de dentro.
Autoconhecer-se é uma viagem, como qualquer viagem, precisamos nos preparar para ela. Entendermos nossa intenção, conversarmos com quem costuma viajar também. Preparamos nossa mala, entender o que precisamos para essa viagem e se preparar para muitas coisas saírem diferente do planejado, para novas rotas e desafios e claro, paisagens deslumbrantes!
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